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Arelate, Gália, ano 50 antes de Cristo (antes da Era Comum). Ano 704 Ab Urbe Condita, na contagem romana.


          “Vai ser um dia nem um pouco fácil”, pensou Adela logo após discutir com a mãe, enquanto abria a porta de madeira que ligava sua casa às ruas de terra batida de Arelate. Teve a impressão de ouvir, abafado, um “Epona te proteja” da mãe quando estava saindo. “Epona deve ter menos dores de cabeça cuidando dos cavalos”. Mesmo contrariada, ela não poderia deixar de trabalhar naquele dia, e ela sabia disso. O que a aliviava, era a temperatura local. Adela não se lembrava da última vez em que sentira o clima tão agradável na cidade, após aquele longo último inverno. Ao ir se aproximando do centro do vilarejo, foi enxergando aos poucos, em meio ao movimento, figuras conhecidas, como sua vizinha Nemetia, que acenou entusiasmada para ela. Adela retribuiu com um sorriso, já que não conseguia mexer os braços enquanto carregava o cesto de lãs.

          Enquanto se distraía ouvindo o canto dos pássaros e o farfalhar de vozes vindas dos comércios locais e dos extrovertidos mercadores helvécios que tentavam, com seu sotaque arrastado, convencer os sulistas a comprarem suas especiarias, Adela apoiou o cesto em uma carroça abandonada para descansar. A presença dos soldados romanos na Gália já havia se tornado tão natural que os gauleses estavam aos poucos perdendo o receio de praticar seus afazeres normalmente no cotidiano. As vozes altas, o idioma gaulês ainda muito mais presente do que o latim e pessoas rindo como se estivessem assistindo a um bardo cantando uma sátira. “O sol deixa as pessoas mais felizes”, pensou imediatamente Adela. Ao perceber que já estava próxima da taverna de Belenos, teve seus pensamentos interrompidos.

          — Dīare, Adela! — era Ambiorix, filho de um pequeno comerciante local. Um jovem alto, com cabelos escuros e sempre com um sorriso confiante. Adela sabia que ele era interessado amorosamente por ela, mas já conhecia sua fama de mulherengo. — Cinco sestércios pelo rolo de lã simples, ãh? Brigid me contou.

          — Na verdade, este está valendo sete, agora. — respondeu desconfortavelmente Adela. Mesmo sabendo que iria ganhar mais pelo tecido, sabia que os romanos haviam aumentado os impostos. — Vai querer quantos?

          — Sete? Por Lugus. Vou ter que avisar meu pai para começar a cobrar mais caro também. De qualquer forma, estamos precisando de pelo menos um desses. Minha irmã está voltando de Bibracte essa semana. Vai à taverna hoje?

          — Preciso. Negócios com Belenos e, com sorte, talvez com algum outro filho de Epona. — respondeu rapidamente Adela, como se quisesse se livrar do rapaz o quanto antes. — Hein, estou indo. Mande lembranças à sua irmã.

          Adela teve a impressão que Ambiorix percebeu sua pressa ao sair. Sabia que se demorasse um pouco mais, o menino a chamaria para algum tipo de passeio com seus amigos estranhos, que nunca paravam de fazer piadas escatológicas. Ao passar pela porta da taverna, se sentiu aliviada. Sempre foi um lugar de segurança, considerando que Belenos, o dono do estabelecimento, era o melhor amigo de seu falecido pai, e parecia ter tomado para si a missão de proteger Adela, sua mãe e sua irmã sempre que tivesse a chance. Como de praxe, Artius, trabalhador da taverna, veio rápido ao seu encontro e tomou o cesto em seus braços para ajudar.

          — Trugarez diom, Artius. — disse cordialmente Adela, enquanto seguia em direção ao balcão. — Dīare, Belenos!

          — Dīare, Adilu! Chegou bem na hora de servirmos o hidromel. — respondeu um carismático homem de uns quarenta e cinco anos, barba espessa e grisalha. — Obviamente vais beber um comigo?

          — Ahn, guarde para depois do trabalho. Sabe que minha mãe me mataria por beber enquanto vendo os tecidos.

          — Ahh, Morrigan entenderia se eu explicasse que estava com você. Sente-se, vou pedir para Artius lhe levar um copo de leite de cabra enquanto olho os tecidos.

          Adela ainda estava remoendo a discussão que havia tido com a mãe minutos antes. Desde que seu pai havia falecido, não haviam de fato discutido entre si. Sempre foram extremamente companheiras, junto com sua irmã, Brigid. Sabiam que manter a casa sem o sustento do pai iria ser um desafio, ainda mais se deparando com soldados romanos por todos os lados quando saíam de casa. Ela se pegou viajando em seus pensamentos de “como seria se meu pai ainda estivesse aqui” enquanto bebia seu copo gelado de leite de cabra. De modo súbito, as vozes dos clientes da taverna abaixaram o volume. Em uma fração de segundo, Adela descobriu o porquê: um soldado romano havia acabado de entrar pela porta.

          O soldado se assentou à última mesa vazia do local, que havia sido abandonada minutos atrás por um casal de camponeses. Para o desconforto de Adela, era a mesa ao lado da dela. Logo as vozes voltaram a aumentar, considerando que um soldado sozinho não incomodava tanto quanto se fossem meia dúzia. Artius lhe serviu um copo de cervoise. Não demorou muito para que o soldado virasse sua atenção para a solitária Adela.

          — Salve, puella. Essa taverna suja não é um lugar adequado para uma menina da sua idade, não acha? — disse o soldado, um homem magro, de rosto exageradamente limpo, sem barba, cabelo negro e curto, olhos castanhos com leve tom esverdeado.

          Adela achou isso extremamente rude. Nem seu pai, quando vivo, se incomodava pelo fato dela frequentar a taverna de Belenos desde tenra idade. Se esforçou para responder o homem da melhor forma possível com o seu latim extremamente limitado.

          — Ahn… salve. — respondeu a moça, com um sotaque gaulês fortíssimo. — já tenho vinte anos.

          Ela era uma moça muito bonita e extremamente bem cuidada. Tinha cabelos longos e escorridos, cor castanho claro, pele mais branca que o normal para uma gaulesa. Andava sempre com um vestido longo, geralmente em cores azul claro ou um verde esbranquiçado. Os dentes frontais levemente avantajados, por isso quase sempre estava com a boca entreaberta. Apesar de já ter seus vinte anos de idade, poderia ser facilmente confundida com uma menina de dezesseis. Nesse momento, Adela percebeu que Belenos havia parado de mexer no cesto de tecidos para prestar atenção na interação entre os dois.

          — Duvido. Minha sobrinha tem vinte e já está uma porca gorda. Pariu duas crianças antes da sua idade. — respondeu o malcriado romano. — Para uma provinciana, até que você não é de se jogar fora, inclusive.

           Adela achou aquela situação um absurdo. Um homem adulto, que aparentava ter pelo menos uns trinta e cinco anos, estava dando em cima dela mesmo pensando que ela fosse uma adolescente. Isso, da maneira mais rude possível. Mesmo sabendo o quanto isso era comum na Gália, ainda sentia asco. Era inconcebível para ela que pudesse vir a ser saudável uma relação entre uma jovem menina e um homem com o dobro da sua idade. Adela tentou continuar bebendo seu leite. Quando levantou o copo, percebeu que estava tendo uma leve tremedeira, de forma completamente involuntária. Ainda que fosse uma mulher extremamente forte e independente, no fundo ela sabia que, se o soldado tentasse fazer qualquer coisa a ela, não haveria escapatória. Os romanos tinham poder total em Arelate, e ela havia ouvido boatos do que acontecia com quem os tentava enfrentar. Tentou se manter tranquila, na medida em que tentava sinalizar a situação para Belenos sem chamar a atenção do romano.

          — Você não vai responder? Estou lhe fazendo um elogio. — disse o irritado romano, pensando estar sendo esnobado pelo silêncio da menina. — Em Roma nos ensinam a nunca dar um vácuo de resposta aos nossos superiores.

          — Não estamos em Roma. — respondeu rispidamente Adela, quase que de maneira automática. Não havia pensado antes de falar, apenas falou. Arrependeu-se quase que imediatamente de ter dito aquilo quando viu o semblante do homem.

          — Sua casa agora é Roma, não te contaram? César tomou esse lugar. E é melhor melhorar o seu latim. Você vem comigo, estou me sentindo solitário nesse seu chorume de vilarejo.

           Adela largou o copo e se levantou. Encarou o homem nos olhos, como se o desafiasse para ver até onde ele iria, e se daria continuidade ao seu convite nada hospitaleiro.

          — Você vai embora agora. — disse Belenos enquanto se aproximava dos dois. — Não atendemos romanos aqui. Artius deveria prestar atenção nisso antes de lhe servir.

          No momento em que Belenos ergueu a voz, todas as vozes da taverna cessaram e os olhares se voltaram à situação. Alguns homens se levantaram e encararam o soldado romano como se ele fosse um objeto radioativo. O romano deu uma boa olhada ao redor. Parecia estar pensando em como reagir. Deu uma última encarada na face de Belenos, como se estivesse tentando memorizar seu rosto, e saiu pela porta da taverna, calado.

          — Me parece que esse energúmeno irá retornar. — disse Adela a Belenos em um tom menos tenso, como se estivesse alertando o amigo. — Romanos tem um ego da profundidade de uma poça d’água.

          — Não se preocupe comigo, tenho minhas próprias defesas. Odeio esses malditos romanos. Você está bem? Fique por perto por enquanto.

          — Preciso ir ao mercado comunitário. Se der sorte, consigo uma galinha para o jantar. Gostou de algum hoje?

          — Sim, vou ficar com dois rolos de linho comum. Eram dois denários cada da última vez, certo?

          — Ahn… desculpe Belenos, sabe como é. Os romanos, como sempre… agora são treze sestércios.

          — Ah, não se preocupe. Te dou quinze sestércios, guarde o troco para você.

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